Falar de Júlio Freire é
recordarmo-nos de alguém que militava persistentemente na crítica a tudo o que
entendia não estar de acordo com as suas ideias e princípios.
Nem sempre recebia das gerações mais novas a aderência a ideias
relacionadas com os caminhos que achava serem os mais correctos e úteis para a
vida colectiva! Mas quem teve com este homem a ousadia e a oportunidade da sua
aproximação nem que tivesse sido por uns breves instantes, muito de
proveitoso foi o tempo, tal era a sua vontade na transmissão do conhecimento e
do saber.
Eu fui um dos que tive esse privilégio ! E dos primeiros livros
que comprei assim que economicamente o pude fazer, por razões dessa
aproximação, foi o Dicionário Ilustrado da Larousse. Aí por finais dos anos
sessenta, quando terminavam os serões televisivos no Café do Chico Minderico
(nesses tempos a programação da TV
encerrava pouco antes da meia noite) e sempre que passávamos frente á sua casa,
lá se encontrava o velho Júlio Freire sentado a apanhar a aragem fresca dessas
noites quentes de Verão. E foi num desses dias que dirigindo-se a mim, me
disse: “Oh, Calvaria chega lá aqui”,
e abrindo um livro espesso com sinais de algum uso mas ainda em muito bom
estado de conservação, mostrou-me como um simples folhear de páginas nos
poderia proporcionar viagens extraordinárias à vida de Ulisses, Galileu,
Arquimedes, Vasco da Gama e de tantas outras figuras que marcaram a História
Universal. Fiquei deslumbrado, pois tinha pela primeira vez diante dos meus
próprios olhos, um Dicionário Ilustrado.
O Júlio Freire andava
sempre de lápis na orelha e quando abríamos o jornal “O Século”,
no café do Chico Minderico, já as palavras cruzadas estavam completamente
decifradas e escritas a grafite. Raramente ficava por preencher alguma
quadrícula, mas foi um desafio a que nós jovens nos propusemos também igualar e
hoje posso dizer que foi devido a esse facto que adquiri o gosto por essa
procura incessante dos sinónimos correctos que coubessem naqueles quadrados tão
peculiares. Fiquei a saber sem nunca mais me esquecer, que a grainha também se
chamava arilo, que Pó era rio italiano, ou que ola também era panela.
No desempenho da
actividade profissional pela qual era mais conhecido, Júlio Freire teve nos
seus últimos anos de vida um estabelecimento de venda de pão na rua de
Santo António, precisamente em frente e oposto ao que hoje existe. Mas as
minhas memórias recuam um pouco mais e situam-se no tempo em que o pão era
comercializado a peso. Sempre que nos dirigíamos à sua casa de habitação que
servia simultaneamente de venda ali na Rua Barão de Almeirim e lhe pedíamos um
quilo de pão, lá vinha o célebre contrapeso , que mais não era do que um bocadinho
desse precioso alimento que perfazia exactamente o seu peso que tínhamos
solicitado.
Conheci o velho Júlio superficialmente, mas penso não
me enganar se disser que era um homem extremamente insatisfeito com as
situações de injustiça que prevaleciam então na sociedade, lembro-me já não sei
em que ano nem em qual eleição, de o ver dirigir-se já muito debilitado
fisicamente à mesa de voto para cumprir o seu direito de cidadania !
Nota - Quis o nosso Amigo Guilherme
Afonso colaborar e bem nesta pequena evocação que o Pombalinho pensou prestar ao Júlio Freire. Essa
contribuição está nos comentários deste post, mas acho
que é de todo o mérito ser incluída complementarmente a este texto.
Diz ele então que “... o
nosso grande amigo Júlio Freire foi um oposicionista convicto aos Governos do
Estado Novo ( Salazar e Caetano) e que passou uns meses na cadeia do Aljube por
ser Delegado, no Pombalinho, da candidatura do General Humberto
Delgado à Presidência da República.”
Aqui fica pois o
testemunho de um acto de verdadeira coragem, em tempos muito difíceis.