Como noutras cartas que
recebi de Guilherme Afonso, fruto de um intercâmbio de amizade que estabelecemos
por volta dos primeiros meses de 2004, também esta de que vos dou
conta hoje aqui no nosso blog, ao Pombalinho e às suas gentes o
nosso amigo, a viver em Maputo, se refere de uma forma muito
especial e com o timbre histórico a que nos foi habituando! Contempla
igualmente aspectos particularmente interessantes da sua vida,
enquanto no exercício como profissional da PSP em Lisboa! Uns e
outros merecem, acho eu, que nos debrucemos por uns breves instantes na
leitura desta sua carta que me endereçou, imagine-se há quase sete anos, e
que eu considerei por bem divulgar!
"Caro Amigo
Manuel Gomes
Muito obrigado
pelos seus votos de uma Páscoa feliz. Que também o Manuel Gomes e toda a sua
Família tenham tido uma boa Páscoa e que tudo sempre vos corra pelo melhor, são
os meus votos.
Muito gostei,
meu amigo, da sua última carta, sobretudo por nela evocar tantas coisas que nos
são comuns, apesar de, na chegada a este mundo, nos separarem cerca de 24 anos.
E se a maior parte delas tem a ver com o facto de termos nascido na mesma terra
e, consequentemente, termos conhecido e conhecermos as mesmas pessoas e
acontecimentos, outras saem desse âmbito e resultam de convivências e de
emoções que pela vida fora foram moldando a nossa personalidade, ou seja, como
o Manuel Gomes muito bem diz, «fomos gravando no “disco rígido” da nossa
existência» e «nos empurram para o querer compreender sempre cada vez mais as
razões da nossa vida».
Nesta sua última
carta, veja só alguns dos pontos que nela focou que vieram despertar vivências
bem enraizadas (sigo a ordem pela qual se apresentam na sua carta).
Júlio Freire. Fomos
grandes amigos. Sempre o tendo conhecido, como não poderia ter deixado de ser,
começámos a fazer palavras cruzadas e a matar charadas juntos, até a concurso,
através de uma revista, o “Cavaleiro Andante”, que também juntos assinámos,
tinha eu dezasseis ou dezassete anos. Juntos, ainda, fomos muitas vezes à
pesca, especialmente quando, depois de eu me ter tornado funcionário do Estado
(polícia), primeiro em Lisboa e depois aqui em Moçambique, ia gozar as férias
ao Pombalinho. E tenho até uma fotografia dele, tirada por mim quando ele está
debruçado sobre o Alviela, com a cana na mão direita à espera que o peixe
pique. Diz o Manuel Gomes que ele «vivia frente ao Diamantino(...) e que mais
tarde teve uma Padaria». Ora, meu amigo, eu sempre o conheci com essa padaria e
como padeiro. Um lapso de memória da sua parte, creio eu, o que é
naturalíssimo.
João Villaret.
Enquanto fui polícia em Lisboa, muitas vezes fui de serviço (e esse era o
serviço que, como polícia, mais me agradava fazer) para os cinemas e para os
teatros, incluindo para o de S. Carlos (ópera). E uma parte do serviço nos
teatros era feita nos bastidores. Pois bem, algumas vezes vi representar o João
Villaret e o vi nos bastidores. Uma das peças em que me lembro de o ter visto
foi em “Daqui Fala o Morto”, no Monumental (Praça Duque de Saldanha) e, se me
não engano, juntamente com a Laura Alves. Além disso, eu estava colocado na
Esquadra de Benfica e ele morou na Estrada de Benfica, numa casa em que, por
sinal, a porteira era a Adelaide Andrade, mulher do Carlos Leal, que também era
polícia mas trabalhava na sapataria, porque tinha aprendido esse ofício com o
António Barros. Ora, ao fazer as minhas patrulhas na área em que ficava essa
casa (fazia esquina com a Rua Duarte Galvão, que desemboca no Hospital da Cruz
Vermelha), muitas vezes vi também o João Villaret, entrando e saíndo.
Mário Viegas.
Através dos meios de comunicação social, acompanhei o seu percurso no cinema,
no teatro e na declamação, especialmente a partir da sua participação no filme
“Kilas, o Mau da Fita”. Um grande artista nascido na nossa Scálabis. Um artista
inconformado, irreverente, arrebatado e iconoclasta que muito merecidamente tem
há muito tempo um teatro com o seu nome em Lisboa, e parece-me que outro, há
pouco tempo, em Santarém, onde antes era, salvo erro, o Teatro Rosa Damasceno.
Quinta da
Melhorada. O meu pai também aí nasceu. E como devia ser pouco mais ou menos da
idade do seu avô Manuel Calvaria, aí brincaram com certeza muito um com o
outro, em miúdos. Além disso, eu trabalhei muito para o João d’Assumpção
Coimbra, sobretudo a gradar. Ainda da última vez em que estive no Pombalinho
fui até à Melhorada, para matar saudades do chão tantas vezes pisado na
infância e na adolescência. Na Melhorada havia uma tamareira, a única ali pelas
redondezas, que foi deitada a baixo por um ciclone em 1941. Algumas das idas à
Melhorada, com outros miúdos, era para vermos se apanhávamos tâmaras. Também lá
havia pavões, e também de lá vínhamos às vezes com as bonitas penas de pavão.
Sobre as
professoras no Pombalinho, eu conheci bem a D. Maria José que foi sua
professora, mas que já não foi a minha. Mas a que foi minha professora creio
que se chamava também Maria José, de nome completo Maria José de Moura Amorim
(o Amorim era o apelido do marido). A D. Verónica, conheci-a melhor, claro.
Tive sempre uma grande estima por ela e pelas irmãs, a Justa e a Chica. Também
conheci os pais e o irmão (Pedro), que tinha uma ourivesaria em Santarém e que
se suicidou. Acho que todas as mulheres da família andaram comigo ao colo e me
mudaram os cueiros. A Verónica menos, julgo eu, por ter ido estudar. Eu nasci
numa casa dessa família e lá vivi até aos 15 ou 16 anos, quando me mudei para o
Pátio do Neto e, quase logo a seguir, para a Rua de Baixo. Muitas vezes,
segundo os meus pais me contavam mais tarde, quando a minha mãe ia para as
lides de uma mulher casada, essas que eu revivo nas minhas memórias, eu e o meu
irmão ficávamos aos cuidados da D. Palmira (a mãe) e das filhas. Eram muito boa
gente, meu amigo, muito boa gente. Nem queira saber com que emoção eu recordo
toda a família.
Para não me
alongar muito mais, passo a responder à sua pergunta sobre o tal rapazinho de
cabelos loiros chamado António Afonso.
É, de facto, meu
filho, e faz daqui a pouco 50 anos. Depois de termos vindo daí, tinha ele 5
anos (aliás, fê-los no barco, quando vínhamos para cá), voltámos aí em 1964 e
ficámos no Pombalinho cerca de seis meses, que era a duração de uma licença
(licença graciosa chamada) a que os funcionários ultramarinos tinham direito de
4 em 4 anos. Ele fez então os 10 anos aí, em 18 de Outubro, e frequentou aí a
terceira classe. A escola era então na Casa do Povo e a professora dele era uma
professora muito jovem ainda, coxa, conhecida por Mariazinha. Pelos vistos ,
essa não foi também sua professora. Se tivesse sido, até poderia o amigo Manuel
Gomes estar aqui numa fotografia que eu então tirei a toda a turma, com a
professora, naquela varanda de seixos da casa ao lado do Borges, em que na
altura morava o João Padeiro (aqui temos nós a questão das profissões usadas
como apelido). Penso que seja só a 3ª classe. No meu tempo, era só uma
professora para os rapazes de todas as classes, e outra para as raparigas. Mas,
como vejo pela sua carta, isso ainda o Manuel Gomes apanhou.
E foi nessa
altura, portanto, que o Manuel Gomes conheceu esse meu filho. Mas ele voltou a
andar por aí, já com 19/20 anos. Tinha ido estudar para Lisboa e estava aí
quando chegou o 25 de Abril de 1974, de que se comemoraram agora os 30 anos. Se
ele sempre terá ido ao Pombalinho com frequência, porque tinha lá os avós, tios
e primos, depois daquela data passou lá bastante tempo, tendo ajudado a criar o
Centro de Trabalho do PCP, com o Travessa, o José Martinho, o José Rodrigues, o
Silvino Ramos, o Joaquim Justino, etc. Não se lembra dele dessa altura?
Depois, com a
independência de Moçambique e de, sobre ficarmos cá ou nos irmos embora, termos
conversado todos, para que a decisão fosse pelo menos consensual, resolvemos
ficar e ele resolveu vir-se embora antes de acabar o curso, até porque as
Universidades viviam numa perturbação muito grande, mal dando para estudar.
Formou-se depois aqui em Ciências da Educação, curso que o outro meu filho,
mais novo 7 anos, também tirou, o que quer dizer que têm os dois a mesma
Licenciatura.
O António Afonso
tem um livro de poesia publicado e colaboração em jornais, o que o outro
(Carlos Alberto) também tem. Do António Afonso, se se interessar em ver poesia
dele e uma crónica, experimente pesquisar na Internet em Afonso dos Santos, que
é o nome que ele usa nesses trabalhos. Em Afonso dos Santos poesia ou em Afonso
dos Santos crónica, chegará lá depressa.
Ele ficou muito
satisfeito por se lembrar dele, agradece muito o seu abraço e retribui com
outro igual.
Caro Manuel
Gomes, desta vez envio-lhe juntamente uma parte das minhas MEMÓRIAS intitulada
“Dá Alguma Coisa ao Necessitado?”. Talvez no seu tempo já não tenha havido
disso. E talvez nem nunca tenha ouvido falar. Quanto à divulgação desta parte
no Livro de Visitas, deixo isso consigo, como da última vez. Mas se fosse a si,
como costuma dizer-se, pelo menos esperaria que aparecesse alguém a
pronunciar-se sobre aquilo que já foi divulgado.
É tudo por esta
vez, Amigo Manuel Gomes.
Um abraço muito
cordial para si, para o seu Pai e mais Família, e votos de muita saúde e de
muitas felicidades.
Guilherme Afonso
28/04/2004 "
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