As cartas como forma de
comunicação escrita, contêm normalmente aspectos ou matérias de caracter
particular a quem só às pessoas correspondidas diz respeito. No entanto, quando
o interesse dos assuntos abordados é considerado de importância históricamente
relevante para o conhecimento público, já esta avaliação pode ser interpretada
de forma diferente!
Tenho mantido com Guilherme Afonso uma frutuosa e regular troca de
correspondência, desde princípios de 2005, e quando leio ou releio as suas
cartas, sinto uma enorme gratidão pelo facto de ter conhecido alguém com uma
visão excepcionalmente atenta e pormenorizada em relação a aspectos cruciais da
vida e particularmente sobre uma determinada fase da história da nossa terra. E
foi o que aconteceu com uma sua carta de 14 de Julho de 2008!
De acordo com uma predisposição de valores mutuamente
aceites entre o remetente e o receptor, entendi por bem transcrever neste
espaço, algumas passagens dessa mesma carta, que relatam lugares e pessoas que
por razões naturais da vida já só fazem parte do imaginário de muitos de nós e
por isso mesmo a merecerem uma justificada referência neste espaço.
[... muito gostava de
ter lá estado (leia-se, festa de
confraternização Junho 2008), mas não pôde ser. Teria tido,
inclusive, a oportunidade de rever todo esse espaço em que, com outros miúdos
da vizinhança, muito brinquei. O edifício da Junta era então habitado pelo
Manuel Barbosa, esposa (a Maria Coimbra) e filho o Manuel João Coimbra Barbosa.
Como o menino rico não vinha para a rua brincar com os meninos pobres, íamos
nós para todo aquele espaço brincar com ele. A começar pela própria casa,
especialmente o sótão, passando ao pátio da própria casa e ao outro que tinha
um bebedouro para o gado e era ladeado pelo palheiro, pelo lagar, que então não
era utilizado, pela habitação do hortelão, pela grande horta, e não me lembro
se por mais alguma coisa, e indo até à horta, em que tínhamos geralmente a
fruta à nossa disposição, ao tanque da rega, muito fundo e em que, por isso, o
meu irmão escapou uma vez por muito pouco de morrer afogado, à garagem e à
cavalariça, expandíamo-nos por aí praticamente à vontade. Além da fruta, uma
vez por outra ainda nos cabia, aos miúdos pobres que brincavam com o filho, um
qualquer petisco oferecido pela Maria Coimbra. Até me lembro que foi num desses
petiscos oferecidos por ela que eu pela primeira vez comi peru. Pela
primeira... e não sei se pela última.
... Sobre o pátio
onde foi tomada a refeição, eu conheci-o ainda no tempo do anterior
proprietário, o Júlio Barreiros. Lembro-me de o ver aí sentado numa cadeira,
com o seu corpo enorme, enorme, gordo, gordo. Tinha dois filhos que residiam
fora do Pombalinho, um deles salvo erro em Santarém, onde, salvo erro também,
exercia as funções de inspector escolar. Que me lembre, tinha também uma filha.
Não sei se tinha mais alguma. Assisti à saída dessa família daquele edifício,
tendo-me até sido oferecida, na altura, pela filha, uma bonita gaiola para pássaros
(sem pássaros); assim como assisti, a seguir, à entrada para o mesmo da família
Barbosa. "
.. ao falares nisso*,
fizeste-me recordar da primeira Festa que me lembro ter havido no Pombalinho.
Tinha eu 12 anos (no ano de 1942, portanto, o que não deixará de ser estranho,
porque era o tempo da Segunda Grande Guerra, tempo de racionamento). O meu pai
era um dos mordomos da Festa e o objectivo principal da mesma era arranjar-se
dinheiro para o relógio da igreja.
E também me lembro que
uma das fadistas que participou nessa Festa foi a Lucinda do Carmo (a mãe do
Carlos do Carmo), com outra fadista também ida de Lisboa, tendo ambas ficado
alojadas em casa das tuas primas Mateiro (Justa, Verónica e Chica), das quais
eu era vizinho. ]
"Ora, meu Amigo,
dessa Festa parece não ter restado, infelizmente, nada que nos permita
estabelecer a sua data precisa. E digo isto porque, tendo-me o Joaquim Mateiro
enviado, há uns tempos, uma rica colecção de programas de festas, de picarias e
de peças de teatro realizadas na nossa terra, nada há referente a essa Festa de
1942.
Mas uma coisa é certa:
foi nessa altura que se angariou, inclusive com o peditório feito, como
habitualmente, de porta em porta pela comissão da Festa, o dinheiro para a
compra do relógio e para o colocar na torre da igreja. Se isso foi programado
para que a colocação do relógio se efectuasse a tempo da sua inauguração ser
feita durante a Festa, disso não me lembro, como é natural. Mas se assim não
foi, tê-lo-ia sido, com certeza, para pouco depois da Festa, com o dinheiro dos
peditórios e de algum mais angariado nos dias da Festa.
Envio-lhe em anexo mais
uma fotografia da igreja, esta tirada em 27 de Junho de 1948 e já com o relógio
na torre. Como pode ver, também nessa altura o adro estava cheio de pedra
britada, para a asfaltagem do adro e de toda a Rua Barão de Almeirim, trabalho
que precedeu a asfaltagem de toda a estrada da Azinhaga a Alcanhões, creio eu,
e em que trabalhei, tanto na primeira obra, na própria asfaltagem, como na
segunda, medindo a pedra, britada no local, da Azinhaga à Quinta de Alpompé, em
Vale de Figueira. "
*Nota – Entre
parênteses recto e itálico, carta de resposta que Guilherme Afonso escreveu a Joaquim
Mateiro em 10 de Junho de 2006, quando este lhe comunicou a realização da Festa
comemorativa do 400º aniversário do Pombalinho.
Sem comentários:
Enviar um comentário