02 abril 2009

Adiafa 1950/51!





Celebrava-se o fim das vindimas nesse ano de 1950 e o rancho reunia-se no pátio da quinta da família Menezes, no Pombalinho, para dar início à adiafa. Nesta fotografia reconhecem-se na primeira fila e da esquerda para a direita, Anita Marcano, Luísa Barreiros, Elvira Bacalhau, António Rufino, Laurinda Antunes, Fernanda Barreiros e Silvina Bacalhau. Na segunda fila e pela mesma ordem, Maria Adelaide Saúde, Helena Minderico, Irene Coradinho, Maria Júlia Cavaco, Albertina Grais, Maria Carolina, Maria Júlia Duarte, Conceição Cruz, Soledade Cavaleiro, Luísa Cota, António Bogalho e Alexandre (cego do Reguengo). Na terceira fila, José Carvalho (tratorista), Francisco Cavaleiro, Guilherme Afonso, Luís Barreiros, Alcides Vieira, João Dias, Gabriel Joaquim, Nicolau Mogas, Alberto Bacalhau, Joaquim Antunes, Clemente e José Mogas.


"Adiafa vem do árabe (addyafa) e significa banquete após o trabalho no campo."
"Consiste na oferta em géneros alimentícios, em peças de vestuário ou em dinheiro, aos trabalhadores rurais no fim dos trabalhos agrícolas."


"É uma refeição de caracter festivo, que o patrão oferece aos trabalhadores no fim de algumas fainas agrícolas: ceifa, vindima, apanha da azeitona, etc."



A adiafa na verdade, é tudo isto! Mas essencialmente consiste na realização de um ambiente festivo que se celebra, ou celebrava, no fim das colheitas! Hoje com a industrialização agrícola e a consequente substituição de mão de obra pela força férrea das máquinas, muito dificilmente assistiremos a este tipo de confraternização pelos campos do nosso Ribatejo.


E é justamente para que possamos imaginar um pouco dessa comemoração, que recorri a um livro editado em 1864 para dele retirar excerto de um capítulo bem ilustrativo de toda a envolvência que rodeava a preparação a adiafa! Começa então assim:


“... Estamos em Novembro, e o sopro gelado do inverno já convida a acender-se o braseiro, e a agruparem-se-lhe em torno, as famílias, sentindo crepitar a lenha, e estalarem as castanhas e as bolotas, que as crianças assam alegremente ao lume da lareira.
A quinta, onde eu agora tenciono introduzir os meus leitores, é vasta e produtiva. A aragem fria de Novembro faz ondular a copa dos seus imensos pinhais, e um exercício de varejadores doideja, ri, e tagarela por baixo da folhagem cinzenta das suas oliveiras. As vinhas misturam-se a perder de vista com as searas; e o pomar, a horta, e o jardim vão-se abrigar à sombra das paredes da casa, ousando até este último, destacar como vedetas, roseiras e jasmins, que vão, trepando silenciosamente, espreitar pelas janelas, e enviar o seu perfume, como suave homenagem, aos donos desse pequeno mundo.

No dia em que chegamos terminou a colheita da azeitona, e, segundo o costume, há de se celebrar a festa, cuja risonha perspectiva bastará para suavizar, aos olhos dos aldeãos, todos os trabalhos de dois meses. Depois do labutar incessante vem o dia de regozijo! Depois da campanha fadigosa o triunfo ambicionado. Os varejadores vão subir ao Capitólio!

Os almocreves de notícias da localidade já espalharam por toda a parte que ia haver adiafa na quinta de tal. Nem os pregadores da azzhala da guerra santa contra os cristãos podiam ser tão bem acolhidos pelos fiéis crentes de Mafoma, como estes noticiaristas orais o eram pelos alegres camponeses dos arredores! Vai haver adiafa, adiafa! Palavra mágica, que envolve a ideia de vinho á descrição, comida a fartar, e bailarico até as pernas dizerem “basta”, Adiafa! Isto é a festa da azeitona, a noite de benefício dos varejadores, o gáudio rasgado, o reinado da folia! Vão lá oferecer o trono do universo sem adiafa!

Subamos a escada de pedra, ao cimo da qual se topa o alpendre e entremos sem receio na vasta casa de entrada, mobilada simplesmente com bancos de pinho. A hospitalidade é um dever sagrado dos proprietários do Ribatejo, e nenhum, por mais duro que tenha o coração, ousa esquivar-se ao cumprimento dele. Subamos pois: espera-nos um bom acolhimento.

Vai um grande ruído a essa hora na casa de entrada, onde penetrámos. Nesse dia, como dissemos, findara a colheita da azeitona, e estava-se realizando a adiafa. Um pequeno olival dos donos da quinta, fora reservado para o último varejo, mais para satisfazer a uma formalidade, do que por não se poder completar a colheita na véspera do grande dia. Mas a etiqueta camponesa assim o exige. Varejar o pequeno olival é como pôr a última pedra num edifício, pretexto para a festividade. Já para esse trabalho os varejadores e apanhadeiras foram vestidos com os seus fatos ricos, e procedeu-se ao varejo com uma gravidade que não deslustraria o inaugurar de um caminho de ferro.

Antes do meio dia estava tudo pronto, e os alegres varejadores, com o coração palpitante, enfileiraram-se atras do seu chefe, que arvorou, em tão solenemente momento, a bandeira da procissão, onde figurava um registo da Virgem, cercado de vistosos laços de diferentes cores. O capataz abriu a marcha e caminharam na sua retaguarda os festivos pares aldeãos. Apenas os donos da casa avistaram ao longe a comitiva, ordenaram que se preparasse a mesa, onde os pobres trabalhadores se haviam de regalar com um banquete, cuja suave recordação bastasse para iluminar, com esplendida luz gastronómica, as trevas da futura e forçada abstinência. Um bom jantar português, farto e suculento! A sopa fumegava em cima da mesa, a vaca e o arroz formavam depois em ordem de batalha. À hora em que entramos, e em que, segundo dissemos, o sol se sumia no acaso, sumia-se também o último pedaço do apetecido manjar no último recanto do estômago aldeão em quanto esperavam saciados que a noite descesse para recomeçarem as danças!!!! "

Por último, um testemunho bem mais recente de alguém que viveu e ainda vive a adiafa na sua terra!

"... Hoje o meu bom amigo Pedro Melro, emérito e orgulhoso produtor de vinho de Alcanhões, convidou-me para a Adiafa. Para quem não sabe, a Adiafa significa a festa que se oferece aos trabalhadores no último dia das vindimas. De acordo com o dicionário a palavra vem do árabe addyafa e significa banquete.
Embora esteja um pouco desvirtuada, esta tradição fez parte do meu crescimento e habituei-me a ouvir falar dela e algumas vezes a, orgulhosamente, participar. Digo orgulhosamente, porque nessas alturas fazia também parte do rancho da vindima, quase sempre por amizade e camaradagem.

Recordo com saudade, o convívio com aquelas gentes simples, o cheiro da terra e das uvas, o suor nos rostos, as cantigas e os cestos pesados que me faziam sentir um homem naquele reino de Homens e Mulheres.


Hoje senti-me quase um intruso, como se não merecesse comer e beber como os outros! O pão caseiro não me soube tão bem. A lebre deliciosa e a sopa de pedra. Os tomates apanhados da terra, o vinho maravilhoso. As azeitonas. O vinho. O vinho!
Para o ano duas resoluções ficaram. Vou primeiro à vindima e não repito a estupidez de não levar a máquina fotográfica!"



Colaboração fotográfica de Pedro Menezes e Bruno Cruz





1 comentário:

Teresa Cruz disse...

Apesar de ser um bocadinho mais nova do que a foto, lembro-me de participar em algumas adiafas na casa José de Menezes; não costumo ser saudosista, mas a lembrança dessa parte da minha infância deixa-me um pouco nostálgica.
Beijinho.
Teresa