José Bray é genro de
Júlio Freire! De visita ao seu blog, "Bray", encontramos
um extraordinário texto da sua autoria publicado no passado dia 28
de Março de 2011. Não se trata de um qualquer testemunho circunstancial mas,
segundo suas próprias palavras, de uma forma de homenagear aquele que ele
considera ter sido, "uma
personagem fascinante"! Na verdade Júlio Freire foi, para
muitos os que tiveram o privilégio de o conhecer, uma pessoa que
transparecia uma rara sabedoria! Quase sempre em "contra-corrente"
ao que era considerado normal em termos sociais, cultivava uma certa
relação enigmática com quem convivia no dia a dia! Não era muito dado a
exposições gratuitas sobre o que pensava mais profundamente, mas sabia-se o
quanto se preocupava com as diversas formas de injustiças! Era, por
variadas razões, uma voz atentamente escutada!!!
" Começa assim o texto de José Bray:
O meu sogro foi
uma personagem fascinante, não resisto ao desejo de falar da sua pessoa. Mais
vezes o irei fazer! Será uma forma de homenagear a sua memória! Bray
Júlio
Freire – O Aljube
Maio de mil
novecentos e cinquenta e oito, eleições para a Presidência da República,
Américo Tomas candidato do regime, Humberto Delgado candidato da oposição.
Era sábado,
vésperas de eleições. Eleições? Não me façam rir, era tudo uma fantochada
naquele tempo não havia essa coisa na política nacional, talvez houvesse em
alguns clubes mas não no governo. Era Salazar, outra vez Salazar, sempre
Salazar e quem ele lá metia para servirem de lacaios e de capacho. Na porta da
padaria do Júlio Freire, o próprio mais alguns homens de meia-idade trocavam
opiniões, falando um pouco de tudo, mas no acto do dia seguinte nem pensar, era
preciso cuidado com os bufos. Um dos temas de conversa era a ida às sortes de
alguns filhos dos presentes e de alguns ausentes, eles até estavam à espera da
camioneta que havia de trazer os mancebos de volta.
Em dada altura,
passou no sentido do cemitério o jipe da Guarda Nacional Republicana, que de
republicana nada tinha, uns infelizes que para fugirem ao trabalho do campo
tinham vendido a alma ao diabo, ganhando uma miséria, deslocados para longe de
casa alimentando-se de pão e enchidos, desenvolvendo cancro no estômago devido
a esse disparate alimentício. O Joaquim, um dos presente, disse entre dentes,
filhos da puta!
Passados que
foram quinze minutos o jipe voltou, parou junto do pequeno ajuntamento, os
militares saltaram para fora com as ultrapassadas espingardas, sim, iguais às
que assassinaram Catarina Eufémia que tinha um filho ao colo e outro no ventre.
O mais graduado fazendo cara de mau e voz grossa, disse. Júlio Freire e Joaquim
Minderico, estão presos, entrem no jipe. E lá foram conforme estavam, o padeiro
embora estando à sua porta não pôde mudar de roupa, foi obrigado a levar o
casaco roto que usava na pesca. Ficaram os familiares em grande sofrimento e
cheios de pânico.
Que se passava?
Salazar, quis tirar de circulação todos os democráticos deste país, por isso a
cena repetiu-se por todo o Portugal. Com esta prepotência atingiu dois
objectivos, menos votos para a oposição e amedrontar os restantes. As prisões
foram tantas que os PIDES e os bufos não chegaram para as encomendas, foi
preciso a Guarda Nacional República e a Legião Portuguesa actuarem em força também!
Os dois
companheiros de infortúnio foram levados para o posto da GNR na capital do
distrito e sem quaisquer condições lá permaneceram até segunda-feira. Má cama,
má comida, mau trato, a sorte (ironia) foi ser Maio, o tempo estava quente!
Nesse dia um PIDE veio levantar os homens e de comboio seguiram para Lisboa,
destino o Aljube. Alguém da terra os viu na estação e pensou que o destino era
a aldeia de ambos, a notícia correu célere, as famílias ficaram ricas de
esperança, mas era boato, o regresso aconteceu só passados noventa dias.
Júlio Freire e
Joaquim de alcunha Canca, eram na verdade dois democratas de esquerda, um mais
radical que o outro, mas homens honrados. O primeiro era mais pacífico no
trato, mais tímido, o segundo não, era um revolucionário ardente sempre
reagindo, por isso iria levar umas porradas enquanto esteve na prisão. Os dois
homens sempre pensaram que após as eleições seriam soltos mas não, a viagem
para a capital foi um choque para eles.
Nesta saga
aconteceram algumas histórias dramáticas, mas também aconteceram algumas com
graça no meio da desgraça! Vou contar uma que tem espírito.
Ao chegar ao
Aljube, separaram o Freire do companheiro, começando a dança do terror.
Edifício de pedra muito velho, portas de ferro pesadonas e rangedoras,
lembravam os sons das prisões da Inquisição, escuridão e humidade. Tudo para
atrofiar o mais valente. Por fim, lá instalaram o pobre padeiro na cela com
pouca luz e com dois catres. Nessa altura, o Júlio Freire já perdera a força
anímica entrando em depressão, perdeu a resistência e a esperança, sentado na
enxerga começou a chorar convulsivamente! Com o sofrimento não reparou que ao
fundo já lá estava outro preso. Foi então que ouviu uma voz triste com
acentuado sotaque alentejano. Olhou, na outra cama um homem lia um papel.
-
Senhor Júlio não desanime porque hão-de vir melhores dias, pense na sua
família, pense na sua filha que ainda precisa de si!
- Homem,
você é bruxo ou foi posto aqui para me espiar? - Assim inquiriu o
Freire.
- O senhor
não se aborreça porque isto foi a uma carta que eu escrevi a mim mesmo.
- Então
como é que o senhor sabe que me chamo Júlio, e tenho uma filha? -
Voltou o padeiro a argumentar.
- Mas meu
senhor, chamo-me Júlio e tenho uma filha! Fui eu que escrevi esta carta que
estou a ler para me animar!
Os dois homens,
olharam um para o outro, primeiro com desconfiança, depois riram com satisfação
aliviando por algum tempo a pressão da cadeia."
José
Bray -22/10/2010
Nota
- Texto retirado DAQUI
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