SER
BARBEIRO E NÃO GOSTAR DE O SER..., ou uma simples e breve história de vida!
De Raúl Pica Sinos recebemos um maravilhoso texto sobre uma
breve conversa que ocasionalmente este nosso amigo teve com Heliodoro da Silva
Bacalhau, mais conhecido por “Sevilha”, na sequência de uma sua ida à barbearia
daquele que poderá ser o último neste ofício no Pombalinho. Começa assim o
admirável diálogo:
RPS - Meu amigo, esta cadeira cheia de velhas e
muitas histórias bem poderia honrar o jardim da aldeia se lá pudesse ser colocada!
HSB - Essa ideia já vem tarde, o Dr. Luís Filipe,
vereador da Camara Municipal da Golegã e Ex-Presidente da Junta, já a pediu. Pode
ter a certeza, quando as mãos me tremerem, essa honra ser-lhe-à feita.
RPS - Já sentado, vejo refletido no espelho o
constante movimento dos seus velhos dedos, segurando o meu cabelo em mechas, com
vistas ao corte certo da inigualável tesoura. E quase em surdina oiço-o dizer:
HSB - Vou fazer-lhe uma confidência: quando na
adolescência, tinha para aí cerca de 12 anos, então aprendiz numa barbearia do
José Reis, situada na vizinha aldeia onde Saramago nasceu, estava longe de imaginar
que ser barbeiro era a profissão que viria a abraçar para a vida. Confesso que
muito mais tarde, foram muitas as noites que sobre o travesseiro as duvidas me
sobressaltaram.
RPS - Sem o interromper, ouvia-o com curiosidade. Era
notória a necessidade de desabafar.
HSB - Oiça, enquanto aprendiz, o talento do mestre,
o meu subsequente entendimento para a aprendizagem originou, com a ajuda do meu
pai, começar a trabalhar por conta própria, em casa alugada, na Rua Manuel Monteiro
Barbosa no Casal do Campo com a idade de 15 anos.
RPS - Corria então o ano de 1958.
HSB - O trabalho era coisa que não faltava para as
quatro barbearias então existentes no Pombalinho. Aos sábados a clientela não
faltava. O Veríssimo tinha a sua situada no cruzamento das ruas 5 de Outubro
com António Eugénio de Menezes. Acumulava com a arte, alguns serviços de enfermagem.
A do Carlos Cavaco, estava lá para o largo da igreja e a do António “Barbeiro”,
estava situada na rua Barão de Almeirim, mesmo em frente à fonte do mesmo nome.
RPS - Acrescentando:
HSB - Aos vinte anos veio a tropa. Com o
desenvolvimento da guerra colonial fui (como milhares de outros jovens)
mobilizado, com a especialidade de soldado barbeiro para Angola. Quando voltei,
abracei de novo a arte. Fui trabalhar a “meias” com o já idoso António
“Barbeiro”. Tomando, um pouco mais tarde, a barbearia por trespasse a troco de
lhe cortar o cabelo e fazer a barba enquanto fosse vivo.
Os apuros eram
satisfatórios. Por lá fiquei largos anos. Mas jovem e irrequieto, estar preso
entre quatro paredes em pé horas a fio, a rotina do trabalho, ouvir repetidas
vezes as mesmas anedotas, os mesmos gracejos, ouvir as “boas novas já velhas da
aldeia” ter que opinar sobre conversas sem ter vontade para tal, começava a ser
um tormento.
Certo dia, já na
casa dos 30 e tal anos, um dos meus clientes, o agricultor Manuel Gamarales, chamou-me
à razão e disse-me que eu já tinha idade para me casar e constituir família. E
que uma sua ex-empregada, moradora para os lados do Pombal, era uma boa
rapariga, trabalhadora e muito responsável! Devias de a conhecer e de lhe
escrever, disse-me ele, e deu-me a sua morada.
Assim fiz. Escrevi-lhe
uma carta a contar-lhe os meus mais honestos propósitos. O encontro foi na
estação do caminho-de-ferro em Pombal. Casamos pela igreja na aldeia Santiago
da Guarda em Ansião. Tinha eu então 38 anos.
Pouco tempo
depois, passei todo o aparato da loja da Rua Barão de Almeirim para uma parte
da nossa casa na Estrada Real. Deixei toda aquela azáfama e procurei outra vida
profissional. Trabalhei em várias empresas e em diversas profissões: na fábrica
de carnes em Rio Maior, na fábrica de confeções em Santarém, na Junta Autónoma,
como pastor, maltês, passando a ser barbeiro apenas aos fins-de-semana, ou na barbearia
Moderna em Santarém, quando me solicitavam.
Hoje, já
reformado, trato da minha horta que é grande e aparo alguns cabelos,
graciosamente ou a troco de um “café,” quando os amigos me pedem. Não estou
nada arrependido.
Não esqueço e
estou grato ao cliente que me deu a morada daquela que foi a mulher da minha
vida.
Pombalinho, 25 de
Julho, de 2020
Raúl Pica Sinos