26 maio 2007

Júlio Freire








Falar de Júlio Freire é recordarmo-nos de alguém que militava persistentemente na crítica a tudo o que entendia não estar de acordo com as suas ideias e princípios.

Nem sempre recebia das gerações mais novas a aderência a ideias relacionadas com os caminhos que achava serem os mais correctos e úteis para a vida colectiva! Mas quem teve com este homem a ousadia e a oportunidade da sua aproximação nem que tivesse sido  por uns breves instantes, muito de proveitoso foi o tempo, tal era a sua vontade na transmissão do conhecimento e do saber.


Eu fui um dos que tive esse privilégio ! E dos primeiros livros que comprei assim que economicamente o pude fazer, por razões dessa aproximação, foi o Dicionário Ilustrado da Larousse. Aí por finais dos anos sessenta, quando terminavam os serões televisivos no Café do Chico Minderico (nesses tempos a programação da TV encerrava pouco antes da meia noite) e sempre que passávamos frente á sua casa, lá se encontrava o velho Júlio Freire sentado a apanhar a aragem fresca dessas noites quentes de Verão. E foi num desses dias que dirigindo-se a mim,  me disse: “Oh, Calvaria chega lá aqui”, e abrindo um livro espesso com sinais de algum uso mas ainda em muito bom estado de conservação, mostrou-me como um simples folhear de páginas nos poderia proporcionar viagens extraordinárias à vida de Ulisses, Galileu, Arquimedes, Vasco da Gama e de tantas outras figuras que marcaram a História Universal. Fiquei deslumbrado, pois tinha pela primeira vez diante dos meus próprios olhos, um Dicionário Ilustrado.

O Júlio Freire andava sempre de lápis na orelha e quando abríamos o jornal “O Século”, no café do Chico Minderico, já as palavras cruzadas estavam completamente decifradas e escritas a grafite. Raramente ficava por preencher alguma quadrícula, mas foi um desafio a que nós jovens nos propusemos também igualar e hoje posso dizer que foi devido a esse facto que adquiri o gosto por essa procura incessante dos sinónimos correctos que coubessem naqueles quadrados tão peculiares. Fiquei a saber sem nunca mais me esquecer, que a grainha também se chamava arilo, que Pó era rio italiano, ou que ola também era panela.

No desempenho da actividade profissional pela qual era mais conhecido, Júlio Freire teve nos seus últimos anos de vida  um estabelecimento de venda de pão na rua de Santo António, precisamente em frente e oposto ao que hoje existe. Mas as minhas memórias recuam um pouco mais e situam-se no tempo em que o pão era comercializado a peso. Sempre que nos dirigíamos à sua casa de habitação que servia simultaneamente de venda ali na Rua Barão de Almeirim e lhe pedíamos um quilo de pão, lá vinha o célebre contrapeso , que mais não era do que um bocadinho desse precioso alimento que perfazia exactamente o seu peso que tínhamos solicitado.

Conheci o velho Júlio superficialmente, mas penso não me enganar se disser que era um homem extremamente insatisfeito com as situações de injustiça que prevaleciam então na sociedade, lembro-me já não sei em que ano nem em qual eleição, de o ver dirigir-se já muito debilitado fisicamente à mesa de voto para cumprir o seu direito de cidadania !

Nota - Quis o nosso Amigo Guilherme Afonso colaborar e bem nesta pequena evocação que o Pombalinho pensou prestar ao Júlio Freire. Essa contribuição está nos comentários deste post, mas acho que é de todo o mérito ser incluída complementarmente a este texto.
Diz ele então que “... o nosso grande amigo Júlio Freire foi um oposicionista convicto aos Governos do Estado Novo ( Salazar e Caetano) e que passou uns meses na cadeia do Aljube por ser Delegado, no Pombalinho, da candidatura do General Humberto Delgado à Presidência da República.”

Aqui fica pois o testemunho de um acto de verdadeira coragem, em tempos muito difíceis.