02 fevereiro 2011

Cartas de Maputo VI !


Como noutras cartas que recebi de Guilherme Afonso, fruto de um intercâmbio de amizade que estabelecemos por volta dos primeiros meses de  2004,  também esta de que vos dou conta hoje aqui no nosso blog,  ao Pombalinho e  às suas gentes o nosso amigo, a viver em Maputo,  se refere de uma forma muito especial e com o timbre histórico a que nos foi habituando! Contempla igualmente aspectos particularmente interessantes da sua vida, enquanto  no exercício como  profissional da PSP em Lisboa! Uns e outros merecem, acho eu,  que nos debrucemos por uns breves instantes na leitura desta sua carta que me endereçou, imagine-se há quase sete anos, e que eu considerei por bem divulgar!


"Caro Amigo Manuel Gomes


Muito obrigado pelos seus votos de uma Páscoa feliz. Que também o Manuel Gomes e toda a sua Família tenham tido uma boa Páscoa e que tudo sempre vos corra pelo melhor, são os meus votos.

Muito gostei, meu amigo, da sua última carta, sobretudo por nela evocar tantas coisas que nos são comuns, apesar de, na chegada a este mundo, nos separarem cerca de 24 anos. E se a maior parte delas tem a ver com o facto de termos nascido na mesma terra e, consequentemente, termos conhecido e conhecermos as mesmas pessoas e acontecimentos, outras saem desse âmbito e resultam de convivências e de emoções que pela vida fora foram moldando a nossa personalidade, ou seja, como o Manuel Gomes muito bem diz, «fomos gravando no “disco rígido” da nossa existência» e «nos empurram para o querer compreender sempre cada vez mais as razões da nossa vida».

Nesta sua última carta, veja só alguns dos pontos que nela focou que vieram despertar vivências bem enraizadas (sigo a ordem pela qual se apresentam na sua carta).

Júlio Freire. Fomos grandes amigos. Sempre o tendo conhecido, como não poderia ter deixado de ser, começámos a fazer palavras cruzadas e a matar charadas juntos, até a concurso, através de uma revista, o “Cavaleiro Andante”, que também juntos assinámos, tinha eu dezasseis ou dezassete anos. Juntos, ainda, fomos muitas vezes à pesca, especialmente quando, depois de eu me ter tornado funcionário do Estado (polícia), primeiro em Lisboa e depois aqui em Moçambique, ia gozar as férias ao Pombalinho. E tenho até uma fotografia dele, tirada por mim quando ele está debruçado sobre o Alviela, com a cana na mão direita à espera que o peixe pique. Diz o Manuel Gomes que ele «vivia frente ao Diamantino(...) e que mais tarde teve uma Padaria». Ora, meu amigo, eu sempre o conheci com essa padaria e como padeiro. Um lapso de memória da sua parte, creio eu, o que é naturalíssimo.

João Villaret. Enquanto fui polícia em Lisboa, muitas vezes fui de serviço (e esse era o serviço que, como polícia, mais me agradava fazer) para os cinemas e para os teatros, incluindo para o de S. Carlos (ópera). E uma parte do serviço nos teatros era feita nos bastidores. Pois bem, algumas vezes vi representar o João Villaret e o vi nos bastidores. Uma das peças em que me lembro de o ter visto foi em “Daqui Fala o Morto”, no Monumental (Praça Duque de Saldanha) e, se me não engano, juntamente com a Laura Alves. Além disso, eu estava colocado na Esquadra de Benfica e ele morou na Estrada de Benfica, numa casa em que, por sinal, a porteira era a Adelaide Andrade, mulher do Carlos Leal, que também era polícia mas trabalhava na sapataria, porque tinha aprendido esse ofício com o António Barros. Ora, ao fazer as minhas patrulhas na área em que ficava essa casa (fazia esquina com a Rua Duarte Galvão, que desemboca no Hospital da Cruz Vermelha), muitas vezes vi também o João Villaret, entrando e saíndo.

Mário Viegas. Através dos meios de comunicação social, acompanhei o seu percurso no cinema, no teatro e na declamação, especialmente a partir da sua participação no filme “Kilas, o Mau da Fita”. Um grande artista nascido na nossa Scálabis. Um artista inconformado, irreverente, arrebatado e iconoclasta que muito merecidamente tem há muito tempo um teatro com o seu nome em Lisboa, e parece-me que outro, há pouco tempo, em Santarém, onde antes era, salvo erro, o Teatro Rosa Damasceno.

Quinta da Melhorada. O meu pai também aí nasceu. E como devia ser pouco mais ou menos da idade do seu avô Manuel Calvaria, aí brincaram com certeza muito um com o outro, em miúdos. Além disso, eu trabalhei muito para o João d’Assumpção Coimbra, sobretudo a gradar. Ainda da última vez em que estive no Pombalinho fui até à Melhorada, para matar saudades do chão tantas vezes pisado na infância e na adolescência. Na Melhorada havia uma tamareira, a única ali pelas redondezas, que foi deitada a baixo por um ciclone em 1941. Algumas das idas à Melhorada, com outros miúdos, era para vermos se apanhávamos tâmaras. Também lá havia pavões, e também de lá vínhamos às vezes com as bonitas penas de pavão.

Sobre as professoras no Pombalinho, eu conheci bem a D. Maria José que foi sua professora, mas que já não foi a minha. Mas a que foi minha professora creio que se chamava também Maria José, de nome completo Maria José de Moura Amorim (o Amorim era o apelido do marido). A D. Verónica, conheci-a melhor, claro. Tive sempre uma grande estima por ela e pelas irmãs, a Justa e a Chica. Também conheci os pais e o irmão (Pedro), que tinha uma ourivesaria em Santarém e que se suicidou. Acho que todas as mulheres da família andaram comigo ao colo e me mudaram os cueiros. A Verónica menos, julgo eu, por ter ido estudar. Eu nasci numa casa dessa família e lá vivi até aos 15 ou 16 anos, quando me mudei para o Pátio do Neto e, quase logo a seguir, para a Rua de Baixo. Muitas vezes, segundo os meus pais me contavam mais tarde, quando a minha mãe ia para as lides de uma mulher casada, essas que eu revivo nas minhas memórias, eu e o meu irmão ficávamos aos cuidados da D. Palmira (a mãe) e das filhas. Eram muito boa gente, meu amigo, muito boa gente. Nem queira saber com que emoção eu recordo toda a família.

Para não me alongar muito mais, passo a responder à sua pergunta sobre o tal rapazinho de cabelos loiros chamado António Afonso.

É, de facto, meu filho, e faz daqui a pouco 50 anos. Depois de termos vindo daí, tinha ele 5 anos (aliás, fê-los no barco, quando vínhamos para cá), voltámos aí em 1964 e ficámos no Pombalinho cerca de seis meses, que era a duração de uma licença (licença graciosa chamada) a que os funcionários ultramarinos tinham direito de 4 em 4 anos. Ele fez então os 10 anos aí, em 18 de Outubro, e frequentou aí a terceira classe. A escola era então na Casa do Povo e a professora dele era uma professora muito jovem ainda, coxa, conhecida por Mariazinha. Pelos vistos , essa não foi também sua professora. Se tivesse sido, até poderia o amigo Manuel Gomes estar aqui numa fotografia que eu então tirei a toda a turma, com a professora, naquela varanda de seixos da casa ao lado do Borges, em que na altura morava o João Padeiro (aqui temos nós a questão das profissões usadas como apelido). Penso que seja só a 3ª classe. No meu tempo, era só uma professora para os rapazes de todas as classes, e outra para as raparigas. Mas, como vejo pela sua carta, isso ainda o Manuel Gomes apanhou.

E foi nessa altura, portanto, que o Manuel Gomes conheceu esse meu filho. Mas ele voltou a andar por aí, já com 19/20 anos. Tinha ido estudar para Lisboa e estava aí quando chegou o 25 de Abril de 1974, de que se comemoraram agora os 30 anos. Se ele sempre terá ido ao Pombalinho com frequência, porque tinha lá os avós, tios e primos, depois daquela data passou lá bastante tempo, tendo ajudado a criar o Centro de Trabalho do PCP, com o Travessa, o José Martinho, o José Rodrigues, o Silvino Ramos, o Joaquim Justino, etc. Não se lembra dele dessa altura?

Depois, com a independência de Moçambique e de, sobre ficarmos cá ou nos irmos embora, termos conversado todos, para que a decisão fosse pelo menos consensual, resolvemos ficar e ele resolveu vir-se embora antes de acabar o curso, até porque as Universidades viviam numa perturbação muito grande, mal dando para estudar. Formou-se depois aqui em Ciências da Educação, curso que o outro meu filho, mais novo 7 anos, também tirou, o que quer dizer que têm os dois a mesma Licenciatura.

O António Afonso tem um livro de poesia publicado e colaboração em jornais, o que o outro (Carlos Alberto) também tem. Do António Afonso, se se interessar em ver poesia dele e uma crónica, experimente pesquisar na Internet em Afonso dos Santos, que é o nome que ele usa nesses trabalhos. Em Afonso dos Santos poesia ou em Afonso dos Santos crónica, chegará lá depressa.

Ele ficou muito satisfeito por se lembrar dele, agradece muito o seu abraço e retribui com outro igual.

Caro Manuel Gomes, desta vez envio-lhe juntamente uma parte das minhas MEMÓRIAS intitulada “Dá Alguma Coisa ao Necessitado?”. Talvez no seu tempo já não tenha havido disso. E talvez nem nunca tenha ouvido falar. Quanto à divulgação desta parte no Livro de Visitas, deixo isso consigo, como da última vez. Mas se fosse a si, como costuma dizer-se, pelo menos esperaria que aparecesse alguém a pronunciar-se sobre aquilo que já foi divulgado.

É tudo por esta vez, Amigo Manuel Gomes.

Um abraço muito cordial para si, para o seu Pai e mais Família, e votos de muita saúde e de muitas felicidades.



Guilherme Afonso 28/04/2004 "



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