29 janeiro 2009

Cartas de Maputo...


As cartas como forma de comunicação escrita, contêm normalmente aspectos ou matérias de caracter particular a quem só às pessoas correspondidas diz respeito. No entanto, quando o interesse dos assuntos abordados é considerado de importância históricamente relevante para o conhecimento público, já esta avaliação pode ser interpretada de forma diferente!

Tenho mantido com Guilherme Afonso uma frutuosa e regular troca de correspondência, desde princípios de 2005, e quando leio ou releio as suas cartas, sinto uma enorme gratidão pelo facto de ter conhecido alguém com uma visão excepcionalmente atenta e pormenorizada em relação a aspectos cruciais da vida e particularmente sobre uma determinada fase da história da nossa terra. E foi o que aconteceu com uma sua carta de 14 de Julho de 2008!


 De acordo com uma predisposição de valores mutuamente aceites entre o remetente e o receptor, entendi por bem transcrever neste espaço, algumas passagens dessa mesma carta, que relatam lugares e pessoas que por razões naturais da vida já só fazem parte do imaginário de muitos de nós e por isso mesmo a merecerem uma justificada referência neste espaço.






[... muito gostava de ter lá estado (leia-se, festa de confraternização Junho 2008), mas não pôde ser. Teria tido, inclusive, a oportunidade de rever todo esse espaço em que, com outros miúdos da vizinhança, muito brinquei. O edifício da Junta era então habitado pelo Manuel Barbosa, esposa (a Maria Coimbra) e filho o Manuel João Coimbra Barbosa. Como o menino rico não vinha para a rua brincar com os meninos pobres, íamos nós para todo aquele espaço brincar com ele. A começar pela própria casa, especialmente o sótão, passando ao pátio da própria casa e ao outro que tinha um bebedouro para o gado e era ladeado pelo palheiro, pelo lagar, que então não era utilizado, pela habitação do hortelão, pela grande horta, e não me lembro se por mais alguma coisa, e indo até à horta, em que tínhamos geralmente a fruta à nossa disposição, ao tanque da rega, muito fundo e em que, por isso, o meu irmão escapou uma vez por muito pouco de morrer afogado, à garagem e à cavalariça, expandíamo-nos por aí praticamente à vontade. Além da fruta, uma vez por outra ainda nos cabia, aos miúdos pobres que brincavam com o filho, um qualquer petisco oferecido pela Maria Coimbra. Até me lembro que foi num desses petiscos oferecidos por ela que eu pela primeira vez comi peru. Pela primeira... e não sei se pela última.
... Sobre o pátio onde foi tomada a refeição, eu conheci-o ainda no tempo do anterior proprietário, o Júlio Barreiros. Lembro-me de o ver aí sentado numa cadeira, com o seu corpo enorme, enorme, gordo, gordo. Tinha dois filhos que residiam fora do Pombalinho, um deles salvo erro em Santarém, onde, salvo erro também, exercia as funções de inspector escolar. Que me lembre, tinha também uma filha. Não sei se tinha mais alguma. Assisti à saída dessa família daquele edifício, tendo-me até sido oferecida, na altura, pela filha, uma bonita gaiola para pássaros (sem pássaros); assim como assisti, a seguir, à entrada para o mesmo da família Barbosa. "







.. ao falares nisso*, fizeste-me recordar da primeira Festa que me lembro ter havido no Pombalinho. Tinha eu 12 anos (no ano de 1942, portanto, o que não deixará de ser estranho, porque era o tempo da Segunda Grande Guerra, tempo de racionamento). O meu pai era um dos mordomos da Festa e o objectivo principal da mesma era arranjar-se dinheiro para o relógio da igreja.
E também me lembro que uma das fadistas que participou nessa Festa foi a Lucinda do Carmo (a mãe do Carlos do Carmo), com outra fadista também ida de Lisboa, tendo ambas ficado alojadas em casa das tuas primas Mateiro (Justa, Verónica e Chica), das quais eu era vizinho. ]

"Ora, meu Amigo, dessa Festa parece não ter restado, infelizmente, nada que nos permita estabelecer a sua data precisa. E digo isto porque, tendo-me o Joaquim Mateiro enviado, há uns tempos, uma rica colecção de programas de festas, de picarias e de peças de teatro realizadas na nossa terra, nada há referente a essa Festa de 1942.

Mas uma coisa é certa: foi nessa altura que se angariou, inclusive com o peditório feito, como habitualmente, de porta em porta pela comissão da Festa, o dinheiro para a compra do relógio e para o colocar na torre da igreja. Se isso foi programado para que a colocação do relógio se efectuasse a tempo da sua inauguração ser feita durante a Festa, disso não me lembro, como é natural. Mas se assim não foi, tê-lo-ia sido, com certeza, para pouco depois da Festa, com o dinheiro dos peditórios e de algum mais angariado nos dias da Festa.


Envio-lhe em anexo mais uma fotografia da igreja, esta tirada em 27 de Junho de 1948 e já com o relógio na torre. Como pode ver, também nessa altura o adro estava cheio de pedra britada, para a asfaltagem do adro e de toda a Rua Barão de Almeirim, trabalho que precedeu a asfaltagem de toda a estrada da Azinhaga a Alcanhões, creio eu, e em que trabalhei, tanto na primeira obra, na própria asfaltagem, como na segunda, medindo a pedra, britada no local, da Azinhaga à Quinta de Alpompé, em Vale de Figueira. "


*Nota – Entre parênteses recto e itálico, carta de resposta que Guilherme Afonso escreveu a Joaquim Mateiro em 10 de Junho de 2006, quando este lhe comunicou a realização da Festa comemorativa do 400º aniversário do Pombalinho.