25 abril 2010

Cartas de Maputo IV !


Neste amistoso intercâmbio que de algum tempo venho mantendo com o nosso Amigo Guilherme Afonso, existem em cartas de entre muitas que já trocamos, temas que resultam de importantes testemunhos históricos que entendo poderem contribuir para uma melhor compreensão de tempos, já de há muito vividos! Acho mesmo que seria injustificado da minha parte, mantê-los no desconhecimento de todos os visitantes deste espaço! E por isso, o que hoje se publica, revela-nos aspectos de personalidade de uma das pessoas que porventura pouca gente dos tempos de hoje conheceu, ou privilegiadamente chegou a privar! Ele é o Francisco Maria Borges e a carta é a que a seguir vos damos conta.


       Maputo, 26 de Setembro de 2007

       Caro Amigo Manuel Gomes


         Que tudo esteja caminhando bem consigo e com os seus, são os meus votos.
Cá pelo meu lado, tudo vai caminhando sem sobressaltos, depois daquele a que fomos sujeitos devido ao Afonso.

Disse-lhe anteontem que responderia dentro de dias ao seu e-mail de 21 p.p., deitando por contas que levaria mais algum tempo. Mas, ontem, lembrei-me de duas coisas relativamente ao texto que me diz ter já escrito sobre a casa Borges que podem ter interesse para si.

Uma é precisamente sobre a designação do estabelecimento, um grande complexo comercial, como outro não havia ali por perto. Eu lembro-me do estabelecimento ser conhecido pela "Loja do Castanhas". E, isso, porque o estabelecimento pertenceu, antes, ao sogro do Francisco Maria Borges, o qual era como tal conhecido: por o Castanhas. Não sei se Castanhas era nome ou alcunha (eu já o não conheci), assim como não sei se teria sido ele quem fundou o estabelecimento, ou se também já o herdara, nem se quando o Borges tomou conta dele já o mesmo teria aquelas proporções.

A outra, é a seguinte: lembro-me de, quando miúdo, o Francisco Borges, de tempos a tempos, dizer à miudagem pobre das proximidades (ou falava aos pais, não estou certo) para se apresentar lá em casa com um prato e uma colher. Sentava então a malta num daqueles muitos compartimentos que tinha lá para o interior e enchia-lhe a barriguinha de fava-rica. É claro que já me não lembro de quantas vezes eu enchi a barriguinha da bela fava-rica do Borges, mas umas 4 ou cinco foram, com certeza. Eu e o meu irmão. E penso não errar se acrescentar os nomes dos irmãos Manuel e Aníbal Condeço (Ratos), o Manuel João Bugalho (Fagunto), o João Carocho e o António Justino (Canário). Só estou a mencionar nomes de rapazes, por não me lembrar se também iam raparigas. Mas suponho que sim, tanto mais que o Borges era um indivíduo progressista, como esse seu gesto dava bem para entender. Aliás, a discriminação, a existir (nesse caso), poderia não vir do Borges, mas dos pais das meninas (por esses tempos havia muito pouca mistura de sexos – hoje será mais moderno dizer: de géneros – mesmo quando se era ainda muito criança).
E porque o Borges era progressista, e, como tal, também oposicionista ao Estado Novo, uma boa parte dos "senhores da terra" não simpatizava nada com ele.
Curioso, é que a primeira vez que eu ouvi falar em espiritismo foi ao Francisco Borges . Quanto a mim contraditoriamente, em relação ao que dele acabo de dizer (homem progressista e adverso ao Estado Novo), ele acreditava no espiritismo, tendo feito parte, segundo dizia, de um grupo de espíritas em Lisboa, de onde era natural e onde vivera até ao casamento.
... Dessa da música nos espaços comerciais ainda não tinha ouvido falar.

É um facto, os tempos modernos são terríveis. Comparados (os modernos actuais – passe o pleonasmo) com os "Tempos Modernos" do Charlot (Charles Chaplin), os do Charlot são uma grande brincadeira.
Já viu esse filme do Charles Chaplin? Vale sempre a pena.

Pois!... É a vida, é, muito estimado Amigo Manuel Gomes... uma vida cada vez mais frenética e inóspita. Vamos resistindo, tanto quanto possível, ao frenesi e à agressividade reinantes.

Cumprimentos muito cordiais para toda a Família.

Um grande abraço para si e outro para o seu pai.

Guilherme Afonso